MARINA LUSA
Psicanalista. Membro da Escola da Causa Freudiana – ECF/AMP
Resumo
Como se construiu, em Freud, o conceito de Unheimlich? Quais caminhos Freud pega emprestado para apreender esse inapreensível que, entretanto, marca nossa experiência? O texto propõe uma arqueologia desse conceito, assim como o contexto e as referências que Freud trabalhou para fazer emergir, na psicanálise, o infamiliar, que, por si só, faz ressoar o movimento das profundezas com as quais o sujeito se confronta. O estudo de Ernest Jentsch (1906), Schelling e a decifração do conto de Hoffmann, “O homem da areia”, são alguns dos pontos que Freud vai com, contra e/ou além para a investigação desse fenômeno angustiante.
Palavras-chave: Infamiliar; familiar, inconsciente, Freud.
Abstract
How was the concept of Unheimlich constructed in Freud? What ways does Freud borrow to apprehend this unapprehensible that, however, marks our experience? The text proposes an archeology of this concept, as well as the context and references that Freud worked to bring out, in psychoanalysis, the infamiliar, which, by itself, resonates the movement of the depths with which the subject is confronted. The study by Ernest Jentsch (1906), Schelling and the deciphering of Hoffmann’s short story, “The Sandman”, are some of the points that Freud goes with, against and / or beyond to investigate this distressing phenomenon.
Keywords: Uncanny; familiar, unconscious; Freud
Em maio de 1919, as hostilidades tinham acabado de terminar. Logo após a guerra, as condições de existência se tornaram muito difíceis na Áustria. Mas Sigmund Freud não era homem de reclamar. Para esse trabalhador incansável, o trabalho é o melhor remédio contra a inquietude e as contrariedades. Assim, em 12 de maio daquele mesmo ano, escreveu a Ferenczi: “Eu não só terminei o projeto de ‘Além do princípio do prazer’, que será reproduzido para vocês, mas também retomei esse pequeno nada sobre o ’Infamiliar’ e tentei, através de uma ideia simples, dar uma base Ѱα à psicologia das massas” (FREUD/FERENCZI, 1996, p. 391-392).
Acompanhando Ernest Jones, “esse pequeno nada” é um artigo antigo encontrado em uma gaveta que Freud decidiu retomar, a fim de preencher suas poucas horas de folga antes de sua partida para Bad Gastein (JONES, 2006, p. 44). “Das Unheimliche”, provavelmente redigido entre maio e junho, foi publicado pela primeira vez no outono de 1919, pela revista Imago. “Então houve um primeiro projeto” (Ibid, p. 451), sugere Jones. O que quer que seja, sabemos somente que essa dimensão do infamiliar já preocupava Freud na época em que ele concebeu “Totem e tabu” (1913). A nota adicionada a seu texto de 1919 o mostra bem: “Parece que nós conferimos o caráter de Unheimlich às impressões que tendem a confirmar toda potência de pensamentos e o modo de pensamento animista em geral, quando já nos afastamos deles no julgamento”.
Por que das Unheimliche?
Freud avisa o leitor na sua introdução: a estética, considerada a “teoria das qualidades da nossa sensibilidade” (Ibid, p. 213), não é o campo habitual de pesquisa da psicanálise. Mas, observa Freud, é possível fazer com que o psicanalista se interesse por um domínio particular da estética, aquele que se situa na abertura negligenciada pela literatura especializada. O Unheimliche, sublinha ele assim, é um desses domínios.
No final do século XVIII e no começo do século XIX, alguns epítetos (eerie, uncanny, weird) de origem anglo-saxônica ou escocesa entram em circulação na língua inglesa. Elas servirão para definir esses lugares ou coisas que inspiram uma onda de horror. Em alemão, esses epítetos são perfeitamente traduzidos pela palavra unheimlich [3].
A esse respeito, reconhecendo a dificuldade de dar uma definição precisa da palavra unheimlich, trata-se, mais frequentemente, de uma aproximação com o que provoca a angústia em geral. “Não há nenhuma dúvida de que (o infamiliar) diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror” (FREUD, 2019, p. 23), explica Freud. O infamiliar é um fenômeno angustiante que não poderia ser confundido com a angústia. Dito isso, acrescenta: “pode-se esperar que exista um determinado núcleo específico” que justifique “a utilização de um termo conceitual” (Ibid, p. 23) que lhe é associado. Para Freud, trata-se, desde então, de elucidar o que é esse “núcleo específico” reenviando, ao seio do que é angustiante, esse ponto que se distingue como um estranhamento inquietante[4]. É esse ponto obscuro que ele tenta elucidar entregando-se a uma pesquisa psicanalítica longa e minuciosa, a fim de extrair a verdadeira origem do que provoca o sentimento do infamiliar. Sobre esse tema, constata Freud, não encontramos quase nada nas obras consagradas à estética. Essa última prefere se ocupar de objetos que provocam os sentimentos belos, atraentes, positivos, em vez daqueles difíceis, que inspiram uma intensa repulsa. Há nisso uma lacuna. Por outro lado, pelo lado da psicologia médica, Freud cita um estudo “substancial, mas não exaustivo”, lançado em 1906, intitulado “Sobre a psicologia do infamiliar”, do psiquiatra alemão Ernest Jentsch, ao qual confronta sua própria teoria. Todo o ensaio de Freud pretende ser uma recusa da tese de Jentsch, que mostra, por assim dizer, uma psicologia descritiva e cognitiva do infamiliar.
Antes de explicitar suas apreciações sobre o ensaio de Jentsch, Freud apresenta as duas vias de pesquisa que seguiu para abordar seu estudo de 1919. Primeiramente, a análise linguística do sentido que a evolução da língua testemunhou na palavra unheimlich. Em segundo lugar, a aproximação de todos os acontecimentos, experiências vividas e situações que despertam em nós o sentimento do infamiliar, a fim de deduzir daí o caráter comum. Nos dois casos, sublinha ele, o resultado é o mesmo. Essa constatação o leva a dar uma primeira definição do fenômeno: “de que o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo” (FREUD, op. cit. p. 33). O inquietante se destaca — é necessário o cernir — tendo o familiar como tela de fundo o tempo todo, no qual ele faz furo. De onde vem a questão: em quais condições o familiar pode se tornar subitamente tão estranho, tão inquietante?
Depois de ter lembrado que, na língua alemã, heimlich significa, por vezes, o que faz parte da casa, do familiar, íntimo e secreto, mantido escondido, querendo dissimulá-lo nos outros, Freud defende que a palavra unheimlich é manifestadamente o oposto do heimlich, heimisch, vertraut, na medida em que designa o que não é conhecido, o novo. Ou, em seguida a essa lógica, seremos tentados a concluir que uma coisa é inquietante justamente porque não é conhecida nem familiar, escreve Freud. No entanto, a experiência o contradiz. Com efeito, nem tudo o que é novo, insólito, não familiar é assustador ou causa incerteza. Alguma coisa deve necessariamente vir se acrescentar ao novo, ao não-familiar, para que ele se torne infamiliar (FREUD, op. cit. p. 33). O que é, então, esse elemento?, interroga-se Freud.
Uma análise etimológica do termo heimlich lhe dá a solução. Ao final dessa investigação linguística, a fronteira entre heimlich e unheimlich se encontra apagada. É notável, formula Freud, que a palavra heimlich, aplicando-se, sobretudo, a isso que é familiar, tenha vindo através de mudanças graduais do uso da linguagem para designar o que pertence à esfera estritamente íntima, ao que está escondido, secreto, dissimulado. Em outras palavras, aquilo que é unheimlich. A “inquietante estranheza freudiana, sublinha Jacques-Alain Miller, (…) repousa inteiramente sobre o fato que duas palavras contrárias possam querer dizer a mesma coisa: Heimlich/ Unheimilich” (MILLER, 1984, s/p.).
Heimlich e unheimilch são apenas o direito e o avesso de uma só e mesma coisa. Ei-nos informados: o heimlich está no coração do unheimlich[5]. Sem integrar o heim(lich) em seu coração, parece difícil saber a particularidade e a complexidade desse fenômeno, observa Freud. A esse propósito, ele se depara com uma observação de Schelling: seria unheimlich tudo o que deveria permanecer um segredo (Geheim), na sombra, e que saiu dali (FREUD, 2019, p. 47). Em uma perspectiva psicanalítica, e de acordo com a definição do filósofo, das Unheimlich se manifesta quando um conteúdo inconsciente retorna bruscamente à consciência. Nessa perspectiva, “nada tem realmente de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento” (FREUD, 2019, p. 85). Lá onde foi recalcado, isso se manifesta alhures numa linguagem cifrada, em outro registro, o do sintoma. O recalcamento é inseparável do “retorno do recalcado” (LACAN, 2018, p. 45). É por isso que Freud anuncia que se “todo afeto de uma moção de sentimento, de qualquer espécie, transforma-se em angústia por meio do recalque, entre os casos que provocam angústia deve haver então um grupo no qual se mostra que esse angustiante é algo recalcado que retorna” (FREUD, 2019, p. 85). O Unheimlich pertenceria, consequentemente, a esse tipo de fenômeno angustiante, cujo cerne é constituído pelo retorno do recalcado. Relacionar o infamiliar[6] com o retorno do recalcado permite a Freud compreender por que o uso linguístico faz passar o heimlich para seu contrário, o unheimlich, dado que a inquietude se sustenta não na natureza de algo que seria inquietante em si, mas em um retorno. Além disso, a relação com o recalque dá luz a uma nova possibilidade na definição de Scheling: o infamiliar seria da ordem do familiar, recalcado “que deveria permanecer oculto, mas que veio à tona” (FREUD, 2019, p. 87). Concebido assim, o corolário do infamiliar decorre disso. O prefixo negativo “un” da palavra unheimlich nada mais é do que a marca do recalcamento do heimlich. O infamiliar é o heimlich/heimisch que sofreu um recalcamento e retornou. Dito isso, o enigma do infamiliar não está, entretanto, decidido por essa delimitação (FREUD, 2019, p. 95), sublinha Freud.
Freud com, contra e além Jentsch
O texto que Jentsch consagrou, em 1906, ao estudo do infamiliar permitiu a Freud dar um passo suplementar na decifragem e na elaboração do conceito do unheimlich. Freud concede a E. Jentsch a pertinência de sua crítica quanto à dificuldade de poder definir um sentimento tão dificilmente compreensível. Isso pelo fato de que uma mesma impressão não exerce necessariamente um efeito infamiliar em cada um. Além disso, sublinha Jentsch, a mesma percepção não reveste sempre, ou pelo menos de forma idêntica, uma marca inquietante para um mesmo indivíduo (JENTSCH, 1998, p. 37). Das unheimliche é uma experiência precisa, singular.
Assim, sugere Jentsch, para aproximar a essência do infamiliar, é preferível, em vez de procurar uma definição, examinar como se produz, no nível psicológico, a excitação emocional que esse sentimento subentende. Segundo ele, o homem alimenta afetuosamente uma familiaridade com tudo o que é da ordem da tradição, do costume ou da herança ancestral. Ao contrário, o novo, o insólito, são percebidos com desconfiança, desconforto, e até mesmo com certa hostilidade. É compreensível, continua ele, que, na associação psíquica “antigo-conhecido-familiar” (JENTSCH, 1998, p. 46) corresponda a um correlato “novo-estranho-hostil” (JENTSCH, 1998, p. 47). Nesse último caso, a ausência de referência e a falta de domínio intelectual podem facilmente se revestir com a nuança do infamiliar. Assim, Jentsch localiza a condição essencial da emergência de um sentimento do infamiliar na incerteza intelectual produzida por um desajuste da atividade associativa no indivíduo. Essa incerteza que retira sua origem de uma impressão inquietante faz vacilar os indicadores simbólicos e imaginários do sujeito provocando o mal-estar e a inquietude. Mas Freud recusa essa interpretação geral e se separa radicalmente desse ponto de vista sublinhando o caráter parcial dessa explicação. O infamiliar não é equivalente ao que não é conhecido, ao não familiar. Não se trata de uma falta de referência, e, portanto, de uma alteração perceptiva. A hipótese cognitiva da “incerteza intelectual” (FREUD, 2019, p. 59), como causa essencial e suficiente do Unheimlich, é decididamente pouco convincente para Freud. Ela é simplesmente descritiva e passa ao lado do recalcado.
Em meio a todas as incertezas psíquicas susceptíveis de produzir um efeito incontestável do infamiliar, Jentsch isola um em particular: “Trata-se da impressão de que um ser vivo poderia ser um objeto, e inversamente, que um objeto inanimado poderia ter uma alma” (JENTSCH, Ibid., p. 41). Além disso, indica ele, experimentamos um incômodo comparável na presença de loucos ou de pessoas em uma crise epilética, pois todas induzem o expectador à dúvida que um processo automático ou mecânico poderia se esconder atrás da imagem habitual que fazemos da ação da alma e de suas propriedades (JENTSCH, Ibid., p. 46). Entretanto, acrescenta ele, “logo que uma explicação racional da situação é dada, essa tonalidade emocional de inquietante estranheza desaparece” (JENTSCH, Ibid., p. 47). Desse fato, o objeto torna-se familiar e perde facilmente seu aspecto assustador (JENTSCH, Ibid., p. 42).
Assim, graças ao discurso da razão, seria possível explicar tudo, tudo compreender, tudo controlar. Que seja. Mas, dessa forma, não se leva em conta o inconsciente, que não obedece à lógica da razão e do bom senso.
Jentsch se refere, então, ao efeito indizível e desagradável provocado pelas figuras de cera, das bonecas artificiais ou dos autômatos sofisticados sem vida, mas que parecem ser dotados dela. O Unheimlich está aqui ligado a um indecidível que se situa entre o animado e o inanimado-mecânico.
Essa ambiguidade foi utilizada repetidamente na literatura, a fim de produzir efeitos estranhamente inquietantes. A título de ilustração literária, Jentsch se refere a Ernest Theodor Amadeus Hoffmann, notadamente no conto fantástico “O Homem da areia”, sem o citar. Freud aprova essa escolha sensata. A seus olhos, esse autor é “o inigualável mestre do infamiliar na literatura” (FREUD, 2019, p. 67). Por isso, ao mesmo tempo que se afasta da leitura que Jentsch fez de Hoffmann, Freud faz, por sua vez, uma decifração da narrativa de Hoffmann que ficará na história.
Jentsch considera que o sentimento de inquietude no conto de Hoffmann é devido à incerteza em que ele deixa o leitor quanto ao estatuto de um personagem: trata-se de uma personagem viva ou de um autômato? Assim, Jentsch coloca o elemento determinante do efeito de inquietude na qualidade do autômato da bela, lacônica e imóvel Olympia, quem o professor Spalanzani, no entanto, afirma ter dotado de vida. Se isso se trata de um ponto de partida, o motivo central se localiza alhures, segundo Freud: o sentimento do infamiliar se relaciona diretamente à figura do Homem da Areia, “que arranca os olhos das crianças” (FREUD, 2019, p. 51), consequentemente, “à representação de que os olhos devem ser roubados” (FREUD, 2019, p. 59). Uma incerteza intelectual não tem nada a ver com esse efeito de infamiliar (FREUD, Ibid.). A experiência psicanalítica nos previne que “uma angústia assustadora das crianças é o medo de machucar ou perder os olhos” (FREUD, Ibid.). O inquietante nesse caso está ligado à angústia do complexo de castração infantil (FREUD, 2019, p. 61).
Por outro lado, sublinha Freud, o efeito de mal-estar suscitado pela narrativa de Hoffmann não se situa tanto no lado do indecidível entre o vivente e o autômato, mas sim, e de modo bem mais inquietante, naquilo que encontramos em nós mesmos, pela luneta ou telescópio do optometrista demoníaco. É algo que nos concerne e que faz vacilar nossas referências colocando em causa o próprio sujeito. Oscilação, desconforto, infamiliar: não é mais uma questão de incerteza intelectual.
“Não me admiraria ouvir que a psicanálise, ocupada em descobrir essas forças misteriosas, tornou-se, ela mesma, infamiliar para muitas pessoas” (FREUD, 2019, p. 91), escreveu Freud.
O inconsciente é, com efeito, a noção mais perturbadora, mais subversiva aparecida no domínio do pensamento. A invenção freudiana guarda sempre sua dimensão perturbadora e revela ao homem algo que ele não deseja saber. O infamiliar é o próprio inconsciente.