MARINA S. SIMÕES
FOTO: FREDERICO BANDEIRA
Analisar uma criança requer ir além de acolher e escutar o sujeito. O trabalho não depende apenas do desejo desse sujeito em trabalhar e do desejo do analista, mas requer a presença dos pais. São eles que procuram o analista, demandando a análise para a criança.
Sabemos que, para que uma análise seja possível, é imprescindível que ocorra transferência. A análise de uma criança requer, também, a transferência com os pais. Nós, enquanto analistas, temos o desafio de criar um laço transferencial com os pais, senão a criança, com o seu sintoma, não chega ao tratamento.
Geralmente são os pais que procuram o analista, demandando a análise da criança por diversos motivos que causam mal-estar: algo da criança que os incomoda, demanda da escola ou, ainda, por indicação de algum médico, parente ou amigo. A primeira demanda é dos pais. Acolhemos essa demanda tomando o cuidado de escutar a singularidade que uma criança desperta no adulto que nos procura.
Cabe ao analista investigar o que levou os pais a procurá-lo e qual é a posição deles diante do sintoma da criança. O analista dá lugar ao saber dos pais, acolhendo o que eles falam, atento à diferenciação entre o sintoma do par parental, o sintoma da mãe, do pai e da criança. Abrem-se aí questões fundamentais: qual é o lugar que a criança ocupa na família, assim como qual é o sintoma que ela ocupa para esse Outro?
Podemos obter algumas dessas respostas por meio das entrevistas com os pais, identificando onde se situa seu sintoma em relação à criança. A presença do desejo dos pais molda o sujeito, e a sua ausência deixa uma marca, que reaparecerá nas formações do inconsciente, incluindo o seu sintoma, que responde a uma falha na estrutura familiar.
A impossibilidade de estabelecer laços transferenciais ocorre quando os pais “não quererem saber” sobre o sintoma do filho. Nesses casos, não há possibilidade de transferência entre pais e analista. Esses pais não questionam, mas demandam respostas, querem que o analista “cure” o seu filho, fazendo com que o sintoma que incomoda desapareça.
Nos casos em que a criança é encaminhada por um terceiro, que pode ser a escola, um médico, um amigo, os pais não questionam, não demandam e, algumas vezes, não estão incomodados com o “problema” que o filho apresenta. Apenas cumprem o papel que lhes foi solicitado. Apostamos, então, na transferência com a criança, para que o tratamento seja possível.
Já nos casos em que os pais querem saber, a transferência não é apenas possível, mas necessária para o trabalho com a criança. Nesses casos, apostamos no inconsciente do pai e/ou da mãe para fazer o laço transferencial. Escutamos cada um do par parental, com o seu sintoma e o seu desejo. Aqui, cabe interpretar, diferente do primeiro caso, em que a transferência não é possível. De acordo com Freud, podemos interpretar apenas quando a transferência já está estabelecida, pois a emergência da transferência significa que há processo inconsciente.
Na relação paciente-analista, o paciente realiza o trabalho. É ele quem produz, entregando o material ao analista, a este cabendo recebê-lo, escutá-lo e, quando possível, interpretá-lo, intervindo enquanto Outro.
De acordo com Lacan (1964), a interpretação não está aberta a todo e qualquer sentido e tampouco toda interpretação é possível. Ela funciona quando toca o inconsciente, o que é complexo e exige cautela do analista. A interpretação não visa tanto ao sentido; visa mais a reduzir os significantes ao “não-senso”.
Os pais chegam ao psicanalista supondo que este saiba algo do sintoma do seu filho e pedem uma resposta. O analista ocupa o lugar de sujeito suposto saber, que é um mecanismo da transferência fundamental para a análise. O sujeito precisa se sentir amado e supor saber ao analista no primeiro momento da transferência. Lacan acreditava que o sujeito suposto saber é o pivô da transferência, pois a análise se estabelece com essa suposição de que o Outro, analista, sabe – posição esta que o paciente consente, mas com a qual o analista não se identifica. Lacan (1964) pontua que
Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber (…) há transferência. (…) Ora, é bem certo, do conhecimento de todos, que nenhum psicanalista pode pretender representar, ainda que da maneira mais reduzida, um saber absoluto (LACAN, 1964, p. 226).
Para Lacan (1938), o sintoma da criança está relacionado com a família, com esse Outro primordial, pois responde ao sintoma da estrutura familiar, representando a verdade do par parental. O sintoma da criança pode representar o que há de sintomático na mãe, no pai ou no casal. Lacan pontua que o destino psicológico da criança depende, primeiro, da relação que as imagens parentais têm entre si. Segundo Lacan, a criança é o sintoma do par parental. E é por esse viés que apostamos na possibilidade da análise com a criança.
(…) o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar. O sintoma – esse é o dado fundamental da experiência analítica – se define, nesse contexto, como representante da verdade do casal familiar. Esse é o caso mais complexo, mas também o mais acessível a nossas intervenções (LACAN, 1938, p. 369).
Os pais com que trabalhamos são os pais reais, que queixam e demandam, e não os pais da fantasia da criança, como trabalhado por Freud em Romances familiares, aqueles que constituem uma autoridade única para a criança, que carrega o conhecimento sobre tudo. Mais tarde, a criança vai compará-los a outros pais e depois rivalizar com eles. Esses, nós tratamos na análise com a criança. Já os pais com que estamos trabalhando aqui ocupam uma função muito importante no tratamento das crianças, e nós contamos com eles para o trabalho ocorrer. Porém, ressaltamos o lugar da criança enquanto analisante, afinal, a análise é o espaço para a criança, enquanto sujeito, trabalhar as suas questões, e não o lugar de análise dos pais.
Algumas vezes os pais precisam do seu espaço para falar e colocar suas questões. Esse espaço, no entanto, deve ser encontrado fora da análise do filho. Perguntamos quando e como encaminhar um pai e/ou uma mãe a um analista, para que tenham um lugar onde eles possam tratar do seu sintoma.
O analista, quando faz uma intervenção com os pais, busca orientar o nó do amor, do desejo e do gozo de ambos. Sabemos a importância de ouvir cada um dos pais para o tratamento da criança, mas questionamos quando devemos chamá-los para conversar.
Convocamos os pais para conversar quando eles nos solicitam, quando acreditamos ser necessário investigar mais sobre a criança, quando percebemos algo errado com a criança que ela não dá conta de falar, quando sentimos a necessidade de dar um retorno e quando precisamos chamar o pai para a sua função, entre outras inúmeras situações. Eles são fonte de saber sobre a criança, mas não sabem de tudo. Buscamos construir, junto à criança e aos pais, algum saber. O trabalho com os pais é um trabalho conjunto, visando ao tratamento da criança.
Alguns pais pedem que o analista os ensine como lidar com o filho, questionando se agem certo ou errado com a criança. Ao analista cabe o cuidado no manejo da transferência com os pais, sendo possível orientá-los, para o trabalho caminhar. Orientar é diferente de dar respostas e ensinar. Orientar é construir soluções possíveis, pontuando o que for importante para a continuidade do trabalho.
Os pais são a primeira fonte de saber da criança, eles são a lei e o amor. Questionamos se o pai e a mãe ocuparam as suas funções para essa criança na construção do Édipo. A estrutura do sujeito depende do Outro e dele mesmo, de como a falta se instaura. O sujeito escolhe, via desejo, qual posição vai tomar, escolhe se alienar ou não, mas para conseguir chegar ao alcance da escolha, é necessário algo antes, e é aí que os pais entram.
Primeiro, o sujeito criança se aliena, dizendo “sim” ao Outro. De acordo com Lacan, esse é o primeiro passo da operação em que se funda o sujeito, sendo essencial a criança passar por ele para chegar ao segundo momento, no qual ele se separa, respondendo “não” ao Outro, dando uma resposta enquanto sujeito desejante. Isso é possível quando o seu lugar no desejo do Outro se torna enigmático para a criança, quando ela sai do lugar de assujeitamento ao gozo do Outro para assujeitar-se a uma lei – a lei do desejo, encarnada pela função do pai. É nesse segundo momento que o campo da transferência começa a ter lugar. O trabalho da análise consiste em ajudar a criança a fazer essa separação, intervindo no lugar em que nos é dado pela transferência.
Nesse momento de impasse, pode acontecer de alguns pais suspenderem o tratamento da criança, porque dizem que ela já está bem, quando o sintoma que os incomodava apazigua, ou quando acreditam que a criança “piorou”, está “rebelde”, “agressiva”, pois está se separando, se posicionando enquanto sujeito. Acontece que, quando a análise abre a possibilidade do sujeito criança aparecer, criando certa independência em relação aos pais, estes a interrompem, com ou sem transferência com o analista. São eles que decidem o momento de interromper, e não o analista junto ao analisante.
Na experiência com a clínica, assistimos a tratamentos de crianças sendo interrompidos por várias razões: além dos citados acima, porque os pais acreditam em outra(s) forma(s) de tratamento e creem que terão mais êxito, porque estão com baixas condições financeiras, porque acreditam que a criança já está há muito tempo em tratamento e não obtiveram os resultados esperados, também por questões de mudança de horário ou inviabilidade de levar a criança ao atendimento, entre outras. Nesse momento, nós, enquanto analistas, se possível, chamamos esses pais para mais uma conversa, além de outras ocorridas durante o tratamento da criança. Ressaltamos a importância do tratamento pontuando que ele ainda não chegou ao fim, e que, portanto, não concordamos com sua interrupção. Cabe ao analista amparar também os pais nessa separação.
Uma das causas da interrupção do tratamento da criança é a resistência, que pode ser do lado da criança ou do lado de um dos pais. Há casos em que o pai ou a mãe diz que a criança não quer mais ir às consultas. Investigamos de qual lado está a resistência, para trabalharmos com ela, afinal, a resistência é uma forma de transferência. Ela aparece como um obstáculo para a cura, mas com o manejo da transferência é possível vencê-la. De acordo com Freud (1912),
(…) a transferência (porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempenha um papel diferente. As resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise – e a análise como tal – muitas vezes corre perigo. Daí se deduz que muitas vezes é necessária determinada dose de influencia analítica junto aos pais (FREUD, 1912, p. 146).
Ainda segundo Freud (1912), os fenômenos da transferência – resistência, repetição e sugestão – representam grande dificuldade para o psicanalista, mas são necessários para tornar manifesto os impulsos eróticos ocultos do paciente, ou seja, para chegarmos ao inconsciente do sujeito.
Em 1912, Freud afirma que a resistência deve ser contornada através da interpretação, que é colocada como uma arte, principalmente no que diz da identificação das resistências. Trata-se do manejo da transferência dando o devido tempo para o paciente elaborá-la, superar a resistência e abrir a possibilidade, assim, de recordar e prosseguir com o tratamento.
Depois que ela for vencida, a suspensão das outras partes do complexo quase não apresenta novas dificuldades. (…) assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência. Ocupamo-nos do mecanismo da transferência (…) mas o papel que a transferência desempenha no tratamento só pode ser explicado se entrarmos na consideração de suas relações com as resistências (FREUD, 1912, p. 115-116).
De acordo com Freud (1912), citado por Miller (1988, p. 104), a transferência se produz quando o desejo do sujeito encontra um elemento particular na pessoa do analista, ou seja, quando algo do inconsciente se liga a algum significante que remete ao analista. Ainda segundo Freud (1912), a transferência se dá devido à imago paterna, semelhante à imago materna ou à imago fraterna, sendo a transferência a própria relação da cura, o tempo da experiência e da elaboração, na medida em que tem o Outro como figura central.
A transferência, com a possibilidade de interpretação, favorece o tratamento da criança abrindo espaço para ela construir o seu próprio sintoma, separado do sintoma do pai, da mãe ou do par parental.
Ainda de acordo com Freud (1912), os sintomas podem adquirir uma nova significação a partir da análise, pois o sintoma é um elemento com uma significação que se dirige ao Outro. Sendo assim, o sintoma pode se direcionar ao lugar ocupado pelo analista na cura, lugar este de receptor do sintoma onde, devido à transferência, ele pode operar sobre aquele.
Há, então, no tratamento com crianças, a possibilidade do advir de um sujeito, o que permite a interpretação do analista. Portanto, a análise da criança é, sim, possível, com o manejo da transferência do lado do pai, da mãe e do filho. Apostamos na possibilidade de a criança construir o seu sintoma e saber sobre ele num processo transferencial junto ao analista.