ALMANAQUE ENTREVISTA FREI BETTO*
Foto do Museu Mineiro
ALMANAQUE: O que levou o Brasil — que, até a década de 80 do século passado, era considerado o maior país católico do mundo — ao momento atual, no qual há um crescente aumento da filiação evangélica? De acordo com um estudo do IBGE sobre transição religiosa, em 2030, a população católica será menor do que a evangélica.
FREI BETTO: Em 1950, os católicos representavam 93,5% da população; os evangélicos, apenas 3,4%. Nos últimos 70 anos, a percentagem de pessoas que se declaram católicas caiu rapidamente e chegou a 64,6% em 2010. No mesmo período, os protestantes (históricos, pentecostais e neopentecostais) cresceram e atingiram 22,2% (2010). Houve também crescimento de outras religiões (como espíritas, etc.) e do percentual de pessoas que se declaram sem religião. Em fins de 2018, os evangélicos aglutinavam 34% da população.
Vários fatores explicam essa mudança: o clericalismo, que, na Igreja Católica, dificulta o protagonismo dos leigos (para formar um padre, são necessários quatro anos de filosofia, quatro de teologia e a heroica virtude do celibato, enquanto, para formar um pastor, bastam oitos meses — e ele pode ter família); a desvalorização das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), sob os pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI, ao longo de 34 anos; a rede de proteção social que os evangélicos promovem junto às famílias mais pobres etc. As igrejas evangélicas tendem a crescer onde o Estado se faz ausente, em especial quanto aos serviços de saúde.
A: Em uma entrevista concedida em 2016, o filósofo francês Jean Rancière disse que “a política não tem nada a ver com a política dos políticos, das intrigas palacianas, das negociações de gabinete e disputas de poder”. Segundo Rancière, ela é “uma forma de ação de subjetivação coletiva para construir um mundo em comum”, que inclui aqueles que têm posições político-ideológicas diferentes, visando a criar um “nós aberto e includente, que fala de igual para igual com o adversário”. Assim, ele propõe que, ao contrário de nos determos no antagonismo de populistas versus democratas, “o melhor remédio é a ação política autônoma em relação aos lugares, ao tempo e a agenda estatal […] como antídoto ao mal-estar na civilização”, ou seja, contra a onda atual de ódio e segregação. Diante do avanço do que você chamou de “confessionalização da política” e de seus desdobramentos nocivos para a democracia, que ações, nesse sentido, a Igreja Católica poderia tomar?
FB: O papa Francisco se empenha em reformar a Igreja Católica, essa entidade milenar que, hoje, tem uma cabeça progressista e um corpo conservador. Penso que nenhuma Igreja deva apoiar ou rejeitar um governo. O papel da Igreja é estar ao lado do povo, da maioria, sobretudo dos desamparados. Se o governo serve a eles, serão positivas as relações Igreja-Estado. Se não serve, serão conflituosas.
Rancière faz eco ao que já disseram Platão e, sobretudo, Aristóteles, sobre a função da política. Ocorre que a política, após a queda da monarquia medieval, foi apropriada pela burguesia industrial e financeira e, hoje, serve aos interesses dela, exceto em um país como Cuba. O papel da Igreja Católica e de todas as instituições da sociedade civil é reforçar isso que Rancière chama de “ação política autônoma”, que defino como empoderamento popular, objetivo que se alcança reforçando os movimentos sociais que lutam por conquista e defesa dos direitos humanos e da Terra.
A: Em seu artigo “A ciência e a verdade”, Lacan afirma que o religioso é aquele “que entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso à verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo, o que é propriamente o objeto de sacrifício”. Em outros termos, o que o sujeito demanda é tomado como o desejo suposto de um Deus. Numa época em que várias lideranças cristãs se valem da prática de propagar notícias falsas entre seus fiéis, como pensar essa relação entre a Religião e a Verdade? De que verdade aí se trata, quando o que está em jogo passa, como você declarou, por uma servidão voluntaria à determinada doutrina ou a líderes religiosos?
FB: Penso que Lacan faça eco a Freud, que, por sua vez, não ficou totalmente imune ao positivismo que exerceu tanta influência na cultura da esquina dos séculos XIX e XX. E, no entanto, o avanço do conhecimento científico não fez retroceder o fenômeno religioso, pelo contrário.
Quem tem acesso à verdade? O ateu mais do que o crente? Como disse um chinês da década de 1910, após ouvir um padre pregar “a verdade”, existem três verdades: a sua, a minha, e a verdade verdadeira. E nós dois, juntos, devemos buscar a verdade verdadeira.
Embora nem tudo seja política, a politica está em tudo. Ela é um jogo de interesses. E em uma sociedade tão desigual, um jogo de interesses antagônicos. Os fiéis que pregam notícias falsas, em sua maioria, não sabem que elas são falsas. Como cordeiros a serem tosquiados, acreditam piamente na palavra do pastor ou do padre e, assim, convictos de que ele nunca mente, divulgam o que ele afirma.
Enquanto a Ciência é o reino da dúvida, a Religião é o da certeza. E verdade e autoridade se confundem. Por isso, nós cristãos ou religiosos de qualquer confissão devemos ter como referência não uma verdade abstrata, mas o ídolo de Deus: o ser humano. Pilatos perguntou a Jesus, ao interrogá-lo: “o que é a verdade?”. E Jesus se manteve calado, possivelmente por considerar que não valia a pena “atirar pérolas aos porcos” (expressão do próprio Jesus). Treze séculos depois, meu confrade, Santo Tomás de Aquino, deu uma brilhante e irretocável resposta: “A verdade é a adequação da inteligência ao real”. E o real, acrescento eu, é o que vemos em volta: o ser humano reduzido a mera mercadoria descartável. Tudo o que Jesus propõe no Evangelho e nos engajarmos no resgate da dignidade humana.
Por Giselle Moreira, Ludmilla Féres Faria e Patrícia Ribeiro
* Carlos Alberto Libânio Christo, ou Frei Betto, nasceu em Belo Horizonte. Ë frade dominicano, jornalista e escritor, tendo publicado diversos livros. Em 1983 recebeu o prêmio Jabuti por seu livro Batismo de Sangue, posteriormente transformado em filme dirigido por Helvécio Ratton. Frei Betto recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Assessorou vários governos socialistas, em especial Cuba, nas relações Igreja Católica-Estado.