PATRÍCIA RIBEIRO E ALESSANDRA ROCHA
A partir do tema que orientou os trabalhos do Núcleo de Pesquisa e Psicanálise com Crianças em 2014, “O Trauma e o real na clínica: o que as crianças inventam”, trouxemos à discussão o caso de uma criança psicótica para destacar a importância do que um sujeito pode inventar frente ao encontro com o Outro.
Dado o inexorável efeito traumático que marca a irrupção do significante sobre o corpo de todo falasseri, resta-lhe como saída, aponta Miller, tornar-se inventor. Em seu texto “A invenção psicótica”, ele esclarece que esse termo invenção, embora se aproxime da ideia de criação, comporta uma sutileza a mais, pois o ato de inventar, à diferença do criar, não se faz ex-nihilo, mas a partir do que cada sujeito pode – ou não – dispor.
Se, na neurose, esses impasses advindos da desnaturalização do corpo pela ação do significante são tratados com o apoio dos discursos, na esquizofrenia essa solução esbarra em uma impossibilidade. Por não encontrar amparo no simbólico, ter um corpo, para o sujeito esquizofrênico, é especialmente complexo, o que o obriga a “inventar um discurso, (…) para poder usar seu corpo e seus órgãos” (MILLER, 2003, p. 11).
No entanto, de que discurso se trataria se, na esquizofrenia, encontramos “o único sujeito que não se defende do real pelo simbólico?” (MILLER, 1996, p. 190). Se para ele o simbólico é real, qual seria o estatuto dessas invenções?
O Nascimento Do Corpo Para A Psicanálise
Em Freud, o conceito de narcisismo foi forjado para destacar a importância da libidinização da imagem do corpo na constituição do eu. Lacan vai destacar, em sua tese sobre o corpo, que, para o falasser, não basta o investimento libidinal da imagem. Para que ele passe da condição de portador de um corpo fragmentado, tomado por um emaranhado de pulsões, à posse de um corpo unificado e libidinalmente organizado em suas zonas erógenas, há que ocorrer um enlaçamento entre os registros simbólico e imaginário. Tal é a condição para que se possa haver um revestimento ao real da carne. Essa operação depende, fundamentalmente, da ação do Outro que autentifica essa imagem libidinizada permitindo que o sujeito nela se reconheça: trata-se aí do processo de identificação no qual ocorre “uma transformação no sujeito quando ele assume uma imagem e a reconhece” (BARROSO, 2014, p. 153). A criança se fixa a essa imagem que ela é sob o olhar do Outro, ponto no qual se vê amável.
Nesse sentido, a alienação à imagem é tributária à alienação à cadeia simbólica, ou seja, o falasser só pode se reconhecer no espelho se contar com o apoio de um ponto simbólico situado fora da imagem. O que está em jogo é esse lastro simbólico, o qual Freud designou como Ideal do Eu – I(A) – e que opera a partir da identificação do sujeito a um significante ou ao traço unário, S1, amparo simbólico do corpo como consistência imaginária. Nos casos de autismo e de esquizofrenia, entretanto, esse S1 não se articula a um segundo significante (S2) para consolidar essa imagem corporal. Esses sujeitos nos ensinam sobre o fracasso dessa operação de velar o real do corpo a partir da subjetivação da imagem. Para eles, não houve o encontro no Outro de um olhar em que pudessem se ver e se reconhecer. Particularmente na esquizofrenia, esse Outro, tal como ele se apresenta, não barrado, isto é, não separado do gozo; é o Outro da linguagem ou o Outro do corpo.
O Menino Máquina
Apresentaremos sucintamente os elementos do caso que orientou a discussão teórica que se segue. Trata-se de uma criança às voltas com um corpo cuja desinserção no discurso a coloca a mercê de um gozo desregulado em um corpo fragmentado, obrigando-a a se valer de uma curiosa invenção como forma de unificá-lo. A hipótese diagnóstica inicial apontava para um caso de autismo devido à presença de manifestações ligadas diretamente ao corpo – o autobalanceio, as estereotipias – mas, especialmente, por uma relação peculiar a alguns tipos de máquina, que poderiam ter, para esse sujeito, o valor de objetos autísticos. Ele tem um interesse acentuado por máquinas de lavar roupas e por seu modo de funcionar.
Éric Laurent (2014) esclarece que não existem, no corpo do sujeito autista, os furos que permitem a construção dos trajetos pulsionais para descarga do gozo. Por essa razão, um dos modos pelo qual ele tenta dar conta desse excesso de gozo no corpo se faz por meio da invenção de objetos muito particulares, a partir dos quais ele se acopla como se criasse, assim, um órgão suplementar a seu corpo para localizar o gozo. Esse autor confere a esses objetos autísticos a função de produzir bordas de gozo.
O avanço do tratamento, entretanto, indicou algo distinto disso. O modo como a criança se valia desses objetos parecia apontar para a forma de funcionamento de seu corpo, de seus circuitos pulsionais dispersos, fragmentados, perturbado por uma desregulação libidinal por não poder contar com o significante produtor de uma perda de gozo, o falo, que viria domesticá-lo e localizá-lo no corpo.
Um exemplo clássico dessa perturbação foi dado por Freud (1911) em sua análise do relato do presidente Schreber, na qual ele destaca que, quando sua libido invade a imagem do corpo próprio, irrompe seu gozo narcísico. É, portanto, essa imagem invadida por uma carga de libido não castrada que o faz perceber sua imagem como feminina, isto é, como um corpo dotado de um gozo que não se reduz ao gozo fálico.
Outro elemento crucial refere-se ao fato de que a mãe da criança vivia perambulando nas ruas e bebia muito na época em que ele nasceu. Ela recorda que só se deu conta de que estava grávida quando o filho estava prestes a nascer. Retomo aqui o que Lacan observou a respeito da criança objetificada pelo Outro materno e seus efeitos no malogro da constituição do corpo:
“Aqui se inscreve a possibilidade da fantasia do corpo despedaçado com que alguns de vocês se depararam entre os esquizofrênicos. […] o que a mãe do esquizofrênico articula sobre o que seu filho era para ela no momento em que estava no seu ventre – nada além de um corpo, inversamente cômodo ou incomodo, ou seja, a subjetivação do a como puro real.” (LACAN [1962-63], 2005, p. 113)
O uso abusivo da bebida e a errância pelas ruas, deixando a criança sozinha em casa, só irá cessar, relata ainda a mãe do menino, frente à ameaça de perder a sua casa, recebida em um programa social de moradias.
A princípio, considerou-se que esse sujeito se apoiava nas máquinas aos moldes de uma prótese, como um recurso frente à total ausência de um corpo, o que pode ser uma solução no autismo. Entretanto, o surgimento, no decorrer do tratamento, de máquinas distintas, ligadas às diferentes funções corporais – nas quais circulam líquidos, oxigênio ou mesmo o calor que aquece corpos mortos –, conduziu a pensar em uma construção delirante destinada a se fazer um corpo, ainda que disperso, não unificado, tal como ocorre na esquizofrenia.
Essa hipótese se confirma quando, certa vez, ao se deparar com uma cena de mães com suas crianças, o menino diz: “Não existem máquinas de lavar pequena, média e grande? Então, também existem crianças pequenas, médias e grandes. As pequenas não andam ainda e dormem no colo da mãe”. E acrescenta: “eu durmo no colo da minha mãe”.
Ao ouvi-lo fazer essa série metonímica envolvendo crianças e máquinas de lavar, me pergunto se não é dessa natureza a parceria que foi possível para essa mãe fazer com seu filho. Trata-se, certamente, não de uma criança-falo, que se inscreve no desejo de uma mulher, mas podemos pensar em uma “criança-máquina”, no sentido de uma mãe que dispensa cuidados a seu filho, digamos, maquinalmente: cuidar do filho lhe permite preservar a sua casa.
“As Crianças Do Um Sozinho”
Em seu recente livro, Suzana Barroso recupera a expressão “as crianças do Um sozinho”, cunhada pela psicanalista Estela Solano para se referir às crianças autistas e esquizofrênicas cujos corpos não se constituíram devido à ausência da articulação do par S1 e S2 ou à falta de poder contar com o apoio de um discurso estabelecido em consequência da foraclusão do Nome do Pai. Nessa clínica, estamos diante de sujeitos cujos sintomas demonstram essa desconexão do Outro.
A esquizofrenia, ensina Lacan, se inscreve como paradigmática do “fora do discurso da psicose” (LACAN, 1972- 2003, p. 492) no que concerne a impossibilidade de saber fazer com o mais fundamental órgão do corpo, a linguagem. Na ausência desse saber, cabe ao sujeito inventá-lo a partir dos elementos de sua lalangue, conceito lacaniano para se referir a “a massa sonora que antecede a captura do falasser pela estrutura da linguagem” (BARROSO, 2014, p. 257).
As crianças psicóticas – tanto quanto as neuróticas – podem produzir sozinhas suas invenções ou, podemos também dizer, suas construções sintomáticas para introduzir uma subtração no lugar do Outro, fazendo-o inexistir, como é peculiar, sobretudo, na esquizofrenia. O analista, contudo, pode ajudá-las nessas construções, acolhendo esses modos singulares de tratamento do gozo no corpo daqueles que dispensam a estrutura do Outro para tal fim.
Operar clinicamente a partir de lalangue pode abrir espaço para o surgimento de um modo de transferência que possibilite “algum aparelhamento do gozo pela linguagem” (BARROSO, 2014, p. 329), propiciando a construção de um corpo e de um laço social.
O Outro Como Máquina
Se o enigma precocemente encontrado pela criança, cuja resolução determina sua estrutura, pode ser nomeado enigma do desejo da mãe, conforme o regime edipiano, no século XXI, com Lacan ele adquire seu verdadeiro nome: enigma do gozo. A resposta tradicional e resolutiva dada a esse enigma pelo Nome do Pai dá lugar, hoje, a uma pluralidade de discursos que revelam a facticidade e a inconsistência fundamental do Outro. Assim, todo discurso se apresenta como uma resposta a essa inconsistência, uma resposta sempre no fundo e em si mesma, delirante. Todo discurso toma o valor de um semblante compensatório. Mais além da dimensão de discurso é a língua em si mesma, que leva em conta a operação de marcação do gozo no corpo. Passamos então, da dimensão universalizante da linguagem, à dimensão de uma lalangue singular para cada um, não mais como discurso, mas como escrita, como sintoma a ser lido, conforme Miller evidenciou no ultimíssimo ensino de Lacan (HOLVOET, 2013, p. 11).
Assim, verificamos que, de acordo com a época, o Outro adquire figuras diferentes. A linguagem, que Lacan nomeou grande Outro, é uma grande máquina à qual estamos todos presos. Em seu texto “Questões sobre os autismos” (LAURENT,2013, p. 175), Éric Laurent retoma essa formulação particularizando o uso dessa máquina significante na neurose e na psicose:
“O sujeito só se prende à máquina da linguagem com a condição de se prender a uma máquina, a um objeto. E cada um de nós está preso a esta grande, e complexa, máquina da linguagem – o grande Outro. Os neuróticos se esquecem que estão presos à ela. A dramática edipiana lhes serve de maquinário para esquecer a prisão à esta máquina, pura repetição. Na psicose, os delírios, as localizações da linguagem, o centro da linguagem são as várias formas de deslocar a questão desta prisão” (LAURENT, 2013, p. 178).
Laurent assinala, ainda nesse mesmo texto, que o corpo robotizado ou maquinizado do autista não seria da mesma ordem do corpo fragmentado do sujeito esquizofrênico. O caso discutido permite colocar essa diferença em destaque, oferecendo uma precisão importante que esclarece esta dúvida: as máquinas não lhe servem como objetos autísticos produtores de bordas de gozo. Elas indicam, antes, o modo fragmentado de funcionamento do corpo, localizando-o no campo da esquizofrenia. O que desregula o circuito libidinal em seu corpo é a foraclusão do Nome do Pai.
A Construção De Um Corpo A Partir Da Lalangue
Sabemos que, para aqueles que consentiram com a lei da castração, o gozo se encontra localizado em um objeto perdido, o objeto a, resultado da inscrição do significante fálico. Mas, para o sujeito esquizofrênico, esse objeto se encontra disperso em seu corpo. O esquizofrênico, segundo Miller (2003), enigmatiza a presença no corpo, torna enigmático o ser no corpo. Esse autor parte da premissa de que existe uma antinomia entre órgão e função: “Temos órgãos e cabe-nos, aos poucos, descobrirmos para quê eles servem” (MILLER, 2003, p. 7). O “para que serve” do órgão está presente desde o início, por excelência, quando se trata dos órgãos sexuais. Esta é a questão do menino: como se servir de seu “pipi” já que, cedo, descobre que a função de micção não esgota tudo o que se pode fazer com ele. Assim, a criança descobre a função prazer, mais além daquela ditada pela fisiologia. Essa outra função do órgão sexual masculino, suas manifestações de gozo que ocorrem à revelia daquele que o porta, fez Lacan afirmar que o falo se apresenta como um órgão fora do corpo justamente por escapar ao seu controle.
No caso dessa criança, parece que seu interesse pelos circuitos funcionais das máquinas se inscreve como algo da ordem do “para que serve” dos órgãos. Dito de outro modo, ela parece localizar, no funcionamento das máquinas de lavar, o que não consegue localizar no corpo. Órgão e função, para esse menino, permanecem disjuntos.
Assim busca construir, com sua lalangue, um corpo. Esse corpo, que não para de se movimentar, de se agitar, é um corpo que goza nele. Seus braços e tronco balançam sem parar, repentinamente as palavras lhe escapam. No entanto, ao ouvir o significante “máquinas de lavar”, seu corpo se acalma, o faz falar, dessa vez endereçando-se ao outro. Esse parece ser o primeiro significante S1 que o representa, assim como parece representar a mãe que, segundo a analista, cuida de seu filho maquinalmente. Mãe e filho parecem ser, portanto, duas máquinas, dois corpos-máquina que se conectam um ao outro.
Podemos dizer que essa é uma primeira identificação que lhe permitiu “inventar um discurso” e, assim, se ligar a esse Outro: tanto à mãe-máquina como a seu corpo-máquina. Ele se interessa pelos circuitos funcionais das máquinas de lavar pois parece que, tal como ele, em certos momentos, elas se agitam, se movimentam sem parar, além de fazerem barulho. Seu corpo é uma máquina que funciona através de circuitos fragmentados.
Palavras Que Fazem Corpo
Parece-nos óbvio o fato de que todo ser humano tenha um corpo. Mas Lacan faz uma distinção importante entre o organismo humano e o corpo do ser falante ou falasser. Ele nos diz que o corpo é um efeito da linguagem que vem do Outro chamado materno. Em outras palavras, é esse Outro materno que dá corpo ao organismo da criança, porque o corpo é o lugar do Outro. Um Outro que nos inscreve na humanidade através de seu desejo não anônimo, como Lacan também o indica em “Nota sobre a criança” (LACAN, 2003). Em seu seminário Mais, ainda (LACAN, 1985), sustenta que o corpo é a sede do gozo e propõe tomar o falasser como aquele que, falando, goza. Podemos expressá-lo com a fórmula: “As palavras fazem corpo” (SALMAN, 2013, p. 8). De fato, as palavras enlaçam o corpo e constituem o inconsciente de um modo distinto do inconsciente pensado por Freud, pois, para Lacan, elas carregam o peso do real. Ter um corpo é precisamente onde o esquizofrênico fracassa. Em seu lugar, restam os órgãos disjuntos. Freud, em sua abordagem da esquizofrenia, nomeou “linguagem de órgão” a linguagem singular que remete ao gozo autoerótico dos órgãos disjuntos. Lacan, por sua vez, a designará, mais tarde, como lalangue: língua da qual goza o ser falante.
Esse menino-máquina, agitado, agressivo, cujo corpo não cessa de se movimentar, inventa seus pequenos pontos de basta, suas pequenas identificações, suas palavras, com as quais vai construir um corpo. Nos mostra como consegue, a partir delas – e do encontro com um analista – avançar em suas construções na tentativa de lidar com esse real que habita seu corpo, que o invade e o agita. É através de sua lalangue, ligada ao circuito funcional das máquinas, que ele se liga a seu corpo e inventa um semblante possível para amarrar algo de seu gozo.
(1) O termo falasser foi introduzido por Lacan para designar a indissociabilidade entre o sujeito e seu corpo ou entre o sujeito e o gozo.