Resumo
A partir das premissas freudianas, o texto recupera e descreve o conceito lacaniano de “inconsciente a céu aberto” como modo de funcionamento do inconsciente psicótico. Disserta sobre a noção de tempo em psicanálise e busca delimitar a incidência do tempo nesse inconsciente que está descoberto da metáfora paterna.
Palavras-chaves: Inconsciente a céu aberto, psicose, metáfora paterna, tempo.Abstract
From Freud’s premises, the text recovers and describes the Lacanian concept of “unconscious in the open sky” as a way of functioning of the psychotic unconscious. It discusses the notion of time in psychoanalysis and seeks to delimit the incidence of time in this unconscious that is uncovered from the paternal metaphor.Keywords: Unconscious in the open sky, psychosis, paternal metaphor, time.
Foto de Antônio Augusto Gomes Batista
FERNANDO CASULA
Psiquiatra, mestre em Psicologia (FAFCH-UFMG),
psicanalista membro da EBP e da AMP | fernando.casula@hotmail.com
O momento histórico que vivemos é marcado pela máxima capitalista que equivale o tempo ao dinheiro. A voz do coelhinho de Alice não cessa de nos atormentar: “é tarde, é tarde”… Estamos sempre em atraso. Ao mesmo tempo, somos confrontados com os efeitos do tempo em nosso corpo biológico e convocados a responder ao apelo social da supervalorização de uma eterna juventude. A quantidade e a velocidade frenética com que circulam as informações não deixam de impactar as subjetividades de nossa época. Se esses fatores são vistos por alguns como motivos suficientes para provocar a angústia existencial, para a psicanálise, a angústia provocada pelo tempo é de outra ordem.
Éric Laurent (2017), no editorial da Revue de la Cause freudienne, número 26, dedicada à temática do tempo, diz que a psicanálise captura seu objeto na incidência (do tempo) sobre a diferença dos sexos, no ponto onde esse faz sintoma. Ou seja, antes de considerar o tempo em sua relação direta com a angústia, a psicanálise considera o ponto onde se inscreve como linguagem e o modo como se dá essa inscrição.
Então, podemos dizer que o impacto clínico do tempo para a psicanálise se solidifica no ponto onde esse faz sintoma. Se revela, por vezes, na forma mais peculiar da inscrição significante e seus paradigmas recorrentes de acordo com as estruturas clínicas.
Se a medida do tempo é verificada de forma objetiva — da mesma maneira que se dá a medida do espaço, por uma norma que dita o número de instantes dentro de uma duração finita —, tal convenção não é reconhecida pelo inconsciente: “O inconsciente não conhece o tempo”. Essa assertiva de Freud está escrita no texto “A interpretação dos sonhos” e é retomada e desenvolvida com requintes em seus textos metapsicológicos de 1915, “O inconsciente” e “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”. Nestes, o conceito de regressão temporal é substituído e faz contraponto ao conceito de regressão topográfica. Temos, então, o inconsciente, o pré-consciente e a consciência, cada um regido por regras próprias. Enquanto o tempo inscreve suas marcas junto com a linguagem e com a representação das palavras no pré-consciente, no inconsciente o tempo é eterno, compatível com o tempo imemorial do mito. Assim, ele recebe a descrição topográfica não como uma medida cronológica de dados de memória, e sim como espaço deformado em torno de buracos e substituições de traços desordenados de memória.
A tese freudiana sobre o tempo e o inconsciente permitiu que Lacan desenvolvesse o estatuto lógico dessas cadeias de memória e estabelecesse como a única medida conhecida pelo inconsciente: o falo. Este não determina a identidade sexual, mas permite o cálculo de uma identificação.
Dessa forma, o ensino de Lacan apresentará as modalidades de articulação da memória inconsciente e o aparecimento temporal do sujeito: buracos de memória, defeitos de medida temporal, persistência inquietante, esquecimentos marcantes, esquecimentos de esquecimentos. Todas essas lacunas e tropeços são materiais que denotam uma lógica do tempo em psicanálise.
Encontramos essa lógica formulada em três momentos distintos do ensino de Lacan. A primeira vez, em seu sofisma “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. Mais tarde, em suas fórmulas na lógica da alienação e separação, no fechamento e abertura do inconsciente (Seminário 11), e, finalmente, em sua topologia com o título de um seminário que reúne as duas dimensões do espaço e do tempo: “A topologia e o tempo”, o último proferido por Lacan, ainda não estabelecido. Retomaremos esses momentos mais adiante, ao articulá-los ao inconsciente, porém não antes de fazer uma certa digressão, na qual tentarei precisar o termo “inconsciente a céu aberto”.
Habitualmente, os analistas utilizam o termo “inconsciente a céu aberto” quando se referem ao inconsciente psicótico. Face à adjetivação do inconsciente freudiano, ao lado do inconsciente transferencial e inconsciente real, mais do que nunca, é tempo de empenharmos em um programa de pesquisa para delimitá-los. Pois Freud, ao descobri-lo, não o fez, embora deixasse pegadas a serem rastreadas e sistematizadas.
O termo “inconsciente a céu aberto” surge em meados dos anos 50, em seu Seminário 3: as psicoses. Na lição de 14 de dezembro de 55, ao se referir a uma apresentação de paciente, Lacan diz que aquele caso clínico “fazia o inconsciente funcionar a descoberto” (1985, p. 73). Cabe pontuar que o texto original francês diz “jouer à ciel ouvert” (ibid., p. 71), equivalente a jogar, representar, funcionar a céu aberto. É interessante notar que Lacan se serve de um caso de neurose para apresentar o tema. Esse paciente, em sua dificuldade de entrar no discurso psicanalítico, fazia o inconsciente funcionar a céu aberto, porque “tudo o que em outro sujeito haveria entrado no recalque, encontrava-se nele suportado por uma outra linguagem” (ibid., p. 73). O motivo desse funcionamento é que ele fora criado em Paris por pais que falavam entre si um dialeto corso. O paciente acabou aprendendo duas línguas e, com isso, criou para si dois mundos: um familiar e outro compartilhado com o mundo externo. Esse dialeto acabou se tornando seu mundo familiar, um dialeto em que se depositavam todas questões relacionadas a sua infância. Para esse paciente, Lacan equivale o dialeto corso ao sintoma como expressão do recalcado, no caso do neurótico. Logo adiante, na mesma lição do seminário, recorre ao texto de Schreber e diz este “faz o mesmo sem necessitar de um dialeto”. Ele escreve claramente o que se passa em seu sistema delirante usando palavras do idioma que é conhecido por todos. Aqui, sim, podemos falar do inconsciente a céu aberto enquanto uma forma específica de estruturação do discurso, no qual o sujeito se localiza fora dele e é invadido, habitado e tagarelado pelo Outro.
Interessante notar que Freud tomou o modo de funcionamento do esquizofrênico para avaliar e validar as teorias do inconsciente e o suplemento metapsicológico à teoria do sonho, ambas de 1914. Segundo Freud, há uma peculiaridade de funcionamento do esquizofrênico: tratar as palavras como coisas. Não há uma comunicação entre as representações das coisas e das palavras. A leitura de Freud por Lacan, pela sua teoria do significante, permitiu dizer que há algo na constituição subjetiva do psicótico que não foi simbolizado: “o que fora rejeitado (do interior) do simbólico retorna no (exterior) no real” (1985, p. 158). A alucinação é o exemplo mais claro disso. “No real” não deve ser entendido como localização, e sim como modalização, ou seja, maneira como algo se apresenta: com um caráter de intrusão e de “céu aberto”. Não se trata, no caso da psicose, de o inconsciente ser mais primitivo, mais original ou infantil. É porque, nessa estrutura, o que o neurótico peleja para velar apresenta-se ali com mais clareza.
Na entrevista[1] sobre o tema das psicoses ordinárias, concedida a Jacques Munier, Éric Laurent (2017) responde:
“Jacques Munier: Interpretar a psicose é ter um olhar sobre o inconsciente a céu aberto…
Éric Laurent: Sim, é um inconsciente cujo céu não está coberto pelo que Freud chamou de o complexo de Édipo. O essencial já não é a tragédia de Sófocles, onde o menino quer matar seu pai para ter sua mãe pra ele sozinho e dormir com ela… É, além disso.
M.:O Nome-do-Pai?
É. L.: Sim, este Nome-do-Pai faz um ponto de amarração, um ponto de capitón, diz Lacan. Mas é precisamente esse ponto que não existe na psicose. Então, como é que isso para? Como funciona a certeza que existe na psicose? É assim que se faz a passagem da psicose extraordinária para a psicose ordinária”
(Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2017/10/22/a-psicose-ordinaria-1/?lang=pt-br).
Importante notar que Éric Laurent correlaciona o inconsciente a céu aberto à ausência do Nome-do-Pai, sintetizando todo o esforço empreendido por Lacan ao longo do Seminário 3 e no escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Lembremos que o significante Nome-do-pai é a leitura lacaniana do Édipo freudiano. Um significante capaz de instituir a linguagem como discurso para o sujeito (entrada do sujeito no simbólico) e possibilitar a função fálica. Podemos considerá-lo um divisor de águas entre as estruturas neurose e psicose. É o que Lacan (1957/1998, p. 582) formula em “De uma questão preliminar…”:
“[…] é num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere a psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose”.
Ao definir o mecanismo da Verwefung (foraclusão), Lacan destaca uma temporalidade peculiar à estruturação psicótica. O termo jurídico foraclusão implica, precisamente, a impossibilidade de fazer uso de um direito quando não exercido no prazo prescrito.
O modo de negação colocado em jogo na Verwefung destrói a coisa no momento mesmo em que a faz existir: “Não só exclui as possibilidades vindouras e fere o futuro, mas também expressa um desejo que lesa o passado” (RABINOVITCH, 2001, p. 19).
Ao se defrontar com a não-inscrição da metáfora paterna como ponto de basta, o psicótico estaria submerso em um abismo temporal, desprovido de balizas simbólicas, pois não ocorre uma ordenação possível no nível da cadeia significante. Nas psicoses, estaríamos confrontados com tal infinitização, estando o tempo do significante eternizado.
Diante dessa dimensão temporal fundante, na qual encerra a possibilidade de que, entre o campo do sujeito e do Outro, possa se estabelecer um intervalo pulsátil, um ritmo capaz de colocar em cena certa duração no tempo, encontramos na psicose a impossibilidade de escansão da voz materna, do Outro primordial, pois não houve a simbolização da ausência da mãe.
Lacan formula a noção de inconsciente enquanto instância pulsátil, intrinsecamente subjugada à dimensão temporal, no Seminário 11, em que podemos ler: “Vocês compreendem que, se lhes falei do inconsciente como do que se abre e se fecha, é que sua essência é de marcar esse tempo pelo qual, por nascer com o significante, o sujeito nasce dividido” (LACAN, 1964/1988, p. 188). Nota-se uma temporalidade atrelada ao movimento no circuito pulsional. Segundo Lacan, “a transferência é o meio pelo qual se interrompe a comunicação do inconsciente, pelo qual o inconsciente torna a se fechar” (p. 125). Assim, a transferência atualizaria o ponto de fechamento do inconsciente, onde a interpretação do analista incide no ponto onde o inconsciente já fizera a interpretação. O movimento pulsátil do inconsciente — abrir e fechar — permite a criação das suas formações pelo neurótico: sintomas, atos falhos, sonhos e chistes, além das resistências durante a análise. No psicótico, a falta da barra proporcionada pela foraclusão do Nome-do-pai impede esse fechamento. Daí a articulação com a proposta de Lacan de um inconsciente a céu aberto, na perspectiva de um tempo eternizado.
No Seminário 3, Lacan indicará uma maneira do psicótico já desencadeado colocar a barra, por uma via diferente daquela do neurótico, e recobrir o inconsciente. Na falta da metáfora paterna (foraclusão do Nome-do-pai no simbólico), resta a construção de uma metáfora delirante, que cumpriria essa função. É o que nos mostra Schreber em seu texto retomado por Lacan. A metáfora delirante “A-Mulher-de-Deus” é construída como uma solução elegante que dará sentido a uma série de fenômenos alucinatórios invasivos e delirantes. Essa solução também fará uma escanção no tempo infinito do delírio e organizará o campo da realidade para o sujeito. Com essa feita, o tempo, para Schreber, pôde ser demarcado: tempo para escrever o livro; cuidar de seus afazeres sociais e familiares; entregar-se aos caprichos divinos etc. Cabe ressaltar que esse trabalho de Schreber não foi favorecido por um laço transferencial com um analista. A transferência nas psicoses é complicada, dado que não é instaurada no tempo do fechamento do inconsciente e, dessa forma, não se estabelece a posição do sujeito suposto saber. Há que se conduzir o tratamento por parte do analista com bastante cautela, pois, no cerne da relação do sujeito, encontra-se a certeza do Outro gozador. A relação de Schreber com seu psiquiatra ilustra bem isso. Flechsig é tomado como perseguidor e acusado por várias atrocidades expostas pelo seu sistema delirante alucinatório. Mesmo assim, Lacan orienta os analistas a não recuar diante da psicose e localiza a posição que deverão assumir ao conduzir um caso dessa estrutura: o de secretário do alienado. Nessa época de seu ensino, Seminário 3, cabe à função de secretário, além de testemunhar as soluções delirantes, orientar o tratamento rumo à construção possível de uma metáfora delirante. Estamos aí no tempo do ensino de Lacan no qual ele prioriza o tratamento do real pelo simbólico.
O inconsciente psicótico sempre fora um ponto de estudo para Lacan, de Schreber a Joyce. No decorrer de seu ensino, a questão da loucura passou a ser abordada não mais como um déficit, mas a partir da forma original de linguagem.
Nos últimos anos de seu ensino, a ênfase dada por Lacan não mais será da partição entre as categorias de psicose extraordinária e neurose clássica. Será em um continuum que a questão será colocada. Lacan manterá o inconsciente e seus modos de distribuição nas categorias do real, do simbólico e do imaginário. Podemos resumir da seguinte maneira: o imaginário é o corpo; o simbólico são as palavras que se diz; e o real são os efeitos que tem o gozo no corpo e os acontecimentos que atravessam esse corpo tomado pela substância gozante. Não haverá mais a primazia do simbólico. Isso é o que nos aponta Laurent quando estende a função do Nome-do-Pai ao sentido topológico, como ponto de amarração, de capiton, para além das psicoses extraordinárias às psicoses ordinárias. Esse dado me parece muito importante, pois, assim sendo, nos permite estender características abarcadas pela noção de inconsciente a céu aberto incluindo, aí, o impacto específico do tempo aos sujeitos que constroem soluções de amarração para além — ou apesar — de estarem na condição de impossibilidade de acessá-lo (Nome-do-Pai enquanto significante). Laurent responde ainda sobre uma variante do “inconsciente a céu aberto” nas psicoses ordinárias ao se referir à relação com a linguagem de forma nua.
“É uma variante do ‘a céu aberto’ que Freud instalou. Não há mais proteção. Não há mais cobertura, não há mais garantias de que as palavras querem dizer alguma uma coisa, porque, em última análise, foi dito pelo pai, com a declinação do Nome-do-Pai e da tradição. Há uma conversação que não deve encerrar-se no fechamento delirante, mas sim permitir uma abertura, um percurso sobre o significado da experiência” (LAURENT, 2017, s/p.).
A partir desses referenciais, caberá ao analista atuar para além de ser o secretário do alienado, isto é, não mais conduzir o tratamento rumo à construção de uma metáfora delirante, e sim um saber fazer mais generalizado com as disrupções de gozo. Nesse sentido, espera-se do ato analítico a instituição, de maneira contingencial, de escanções temporais moderadoras de gozo em um inconsciente desprovido das amarras temporais condicionadas pela ausência do Nome-do-pai enquanto ponto de capiton.